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O Manual Murakami para ultramaratonistas iniciantes

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SE PARA MUITOS CORREDORES, O FETICHE de completar uma maratona é um objetivo semi-utópico, que dizer de uma ultramaratona? Excetuando dezenas de malucos muito endinheirados – Brasil, zil, zil – que se viciam no circuito Elizabeth Arden dos 42K, quem chega até essa distância acaba considerando ir um pouco (ou um muito) mais além.

MARATONA, O FETICHE

A MARATONA DE SP, VIVACE

NO JAPÃO, SEM MURAKAMI – PARTE 1

NO JAPÃO, SEM MURAKAMI – PARTE 2

NO JAPÃO, SEM MURAKAMI – SAIDEIRA

ZILMA, A BALADEIRA QUE VIROU ULTRAMARATONISTA

TEDINHO, O CACHACEIRO QUE NÃO ANDOU NA SÃO SILVESTRE

A ARTE MEMORIALISTA DO CORREDOR ZEN

Foi o que aconteceu com aquele escritor, maratonista e colecionador de discos japonês de que já nos ocupamos aqui, aquele que entre um best seller e outro lançou Do que eu falo quando eu falo de corrida.

Haruki Murakami correu uma ultra de 100K em Hokkaido, na pontinha norte do Japão, e a descrição do que viveu criou um conhecimento que pode ser muito útil para quem começa a sentir comichão de correr muito mais que os 42K.

A ultra que correu, a do lago Saroma, é anual e acontece em junho, no começo de verão no Hemisfério Norte. Mas a latitude é muito alta, e o dia sempre começa gelado, e os corredores, “como insetos”, vão deixando cair suas “camadas de roupas”.

Disse Muraka sobre o local: “O percurso – presumindo-se que você possa se dar ao luxo de admirar a vista – é magnífico.”

Depois dos 42K há um checkpoint a cada 10K e é preciso correr dentro de um tempo estipulado, sob o risco de ser desclassificado.

Murakami imaginou que pudesse correr dez horas sempre a pace 6, e assim completar os 100K. Considerando paradas e tempo para comer, calculou terminar a prova em menos de onze horas. “Mais tarde descobri como havia sido otimista.”

É engenhosa a maneira com que ele consegue driblar a dor que vem extrema após o 55K. Queda incerto se o expediente é real ou ficcional. De qualquer forma, Muraka deixa claro que não pretendia caminhar um único passo, como muitos faziam. “Vim aqui para correr”.

Muitos anos depois, sem tê-lo lido, nosso querido Luiz Antonio del Tedesco, o jornalista cachaceiro, faria exatamente a mesma coisa em seu calvário endorfínico particular, a subida da Brigadeiro.

Seguem algumas considerações do japa, na tradução de Cássio de Arantes Leite, da edição brasileira da Alfaguara. Os cortes que faço trucidam passagens e metáforas brilhantes, como a que evoca Danton, Robespierre e o Tribunal Revolucionário. Mas meu objetivo aqui é moral, não estilístico. Todo modo, se você quiser o texto integral, basta dirigir-se às boas casas do ramo.

Esta é a primeira parte desta edição do Manual Murakami para Ultramaratonistas Iniciantes, que se encerra amanhã. Os grifos são do editor deste pasquim.

Enjoy (ou, como no poema famoso, babe Coca).

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A ESPECULAÇÃO

“Não sei dizer que tipo de significado geral correr 100K possui, mas como uma ação que desvia do comum sem contudo violar valores básicos, é de se esperar que lhe proporcione um tipo especial de autoconsciência (…) como resultado, sua visão da sua vida, suas cores e formas, deve se transformar.

A FRONTEIRA

Na marca do 42,195K há uma placa que diz ‘Esta é a distância de uma maratona’.  Há uma linha branca pintada no concreto indicando o ponto exato (…) para mim aquele era o estreito de Gilbraltar, além do qual estava um oceano desconhecido (…) a meu próprio modo mais modesto, senti o mesmo medo que os antigos marinheiros devem ter sentido.

SINAIS DE VIDA NO PLANETA ULTRA

Ao me aproximar do 50K, senti uma ligeira mudança física, como se os músculos de minhas pernas começassem a se contrair. Eu sentia fome e sede, também (…) a sede continuava a me perseguir. Senti um pouco de preocupação.

Na parada do 55K (…) troquei meu tênis New Balance de 8 para 8 1/2. Meus pés haviam começado a inchar (…) Não estava nem quente nem frio (…) devo ter parado 10 minutos, mas em nenhum momento me sentei. Se sentasse, achava eu, jamais teria sido capaz de me levantar e voltar a correr.

UM HOMEM DIVIDIDO

Agora era correr sem parar até a linha de chegada (…) Meus músculos da perna haviam se enrijecido como um pedaço de borracha velha (…) Meu desejo de correr era imenso, mas minhas pernas não compartilhavam da mesma opinião que eu.

Os 20K entre as paradas de descanso do 55K e do 75K foram excruciantes. Eu me sentia como um pedaço de carne passando pelo moedor. Tinha a vontade de seguir adiante, mas agora todo o meu corpo se rebelava. Eu me sentia como um carro tentando subir uma ladeira com o freio de mão puxado (…) Uma senhora minúscula de uns 70 anos passou por mim e gritou: “Aguenta firme!” (…) Havia ainda 40K pela frente.

Enquanto eu corria, diferentes partes do meu corpo, uma após a outra, começaram a doer (…) Para elas correr 100K era uma experiência desconhecida, e cada parte do corpo tinha sua própria desculpa.

A TRANSFORMAÇÃO

Não sou humano. Sou uma máquina. Não preciso sentir coisa alguma. Apenas seguir em frente. Isso era o que eu dizia a mim mesmo (…) e isso foi o que me fez  ir até o fim. Se eu fosse uma pessoa de carne e osso, teria desmaiado de dor (…) Você tem de se forçar a ocupar um lugar inorgânico. Instintivamente, eu percebi que era o único modo de sobreviver.

A MORAL

Em vez de me forçar a correr, talvez fosse mais sensato caminhar. Um monte de outros corredores está fazendo exatamente isso. (…) Mas eu não caminho um único passo. Vim aqui para correr. Eis o motivo – o único motivo – para eu ter viajado tão longe, no extremo mais ao norte do Japão.

Não importa quão devagar eu pudesse correr, nunca cheguei perto de caminhar. Essa era a regra. Se eu quebrasse uma de minhas regras uma vez, poderia quebrar muitas mais.”

 

 

 

 

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